
A portaria do Ministério da Fazenda, publicada nesta quinta-feira (1º), aumentará a responsabilidade dos envolvidos na propaganda de jogos de azar, em resposta à proliferação de vídeos promovendo apostas nas redes sociais.
Um levantamento da Folha de S.Paulo revelou milhares de vídeos no YouTube com roteiros semelhantes que fazem propaganda positiva para jogos de cassino online. Esses vídeos mencionam supostos robôs com IA para prever resultados, plataformas “bugadas” que favorecem os apostadores, horários secretos para melhores lances e dicas de inteligência emocional para gerir bancas. Mais de 3.500 vídeos foram encontrados nos primeiros sete meses deste ano, após a aprovação da lei que regularizou os caça-níqueis virtuais.
Os dados foram coletados automaticamente e analisados com o uso de inteligência artificial, seguidos de revisão humana. Especialistas alertam que, em jogos de cassino online, não existem estratégias ou sistemas que comprovadamente aumentem as chances de ganho.
Os vídeos muitas vezes servem para divulgar links de programas de afiliados, onde os promotores recebem uma parte do dinheiro perdido pelos apostadores. Estes vídeos violam as regras de jogo responsável publicadas na nova portaria, pois associam sucesso no jogo à habilidade, fazem propaganda enganosa de ganhos, promovem jogos como alternativas de investimento e não alertam sobre a proibição para menores de idade.
A publicidade de afiliados é a que mais gera queixas no Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). O YouTube proíbe a divulgação de apostas sem autorização prévia, mas milhares de links de afiliados continuam circulando nos vídeos encontrados.
“Todas as grandes mudanças no ritmo de moderação que vimos foram por questões políticas ou de regulamentação. Se somos capazes de encontrar vídeos que violam a legislação tão facilmente, então o Google, dono do YouTube, também pode”, disse Guilherme Felitti, sócio da Novelo Data.
Procurado, o YouTube afirmou que usa uma combinação de pessoas e aprendizado de máquina para identificar e remover em escala conteúdo que viole suas regras. Somente entre janeiro e março de 2024, foram removidos 8.295.304 vídeos da plataforma.
De acordo com a nova norma do governo, que entra em vigor em 2025, empresas que ofereçam serviços de publicidade na internet terão de excluir anúncios irregulares após notificação da Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA). Provedores de internet também deverão bloquear sites ou excluir aplicativos mediante notificação.
A SPA será responsável por manter um canal de denúncias e realizar fiscalizações ativas, com o apoio das autoridades, se necessário. As casas de apostas terão responsabilidade jurídica pelo cumprimento das regras e responderão legalmente pela mensagem de seus afiliados. Influenciadores que promovem as casas de apostas também compartilharão da responsabilidade.
A nova regulamentação espera coibir a propaganda agressiva ao responsabilizar todos os atores na cadeia de publicidade. Toda publicidade sobre apostas deverá seguir as normas de jogo responsável e adotar linguagem clara, destacando a proteção aos menores de idade. Será proibida a sugestão de lucro fácil e a associação entre sucesso pessoal e financeiro com informações enganosas.
Embora o Marco Civil da Internet determine a remoção de conteúdo apenas mediante decisão judicial, o advogado André Santa Ritta, sócio do escritório Pinheiro Neto, considera legal a possibilidade de remoção por ato administrativo criada na regulação das apostas. “As normas do Ministério da Fazenda devem prevalecer sobre uma norma genérica do Marco Civil”, diz.
A concentração das decisões de notificação na SPA dá mais segurança às plataformas, segundo Paulo Rená da Silva Santarém, pesquisador do IRIS (Instituto de Referência em Internet e Sociedade).
Em julho, a Folha de S.Paulo mostrou que 2.217 anúncios pagos circularam no Instagram, Facebook e WhatsApp com menções às palavras “tigrinho” e “Fortune Tiger” nos 20 primeiros dias de junho. Parte das campanhas era recorrente e estava no ar desde o início do ano. Os dados constavam na biblioteca de anúncios da Meta.
Além de links de afiliados, havia endereços de grupos de promoção de apostas no Telegram e no WhatsApp e contas de mais afiliados no Instagram. Esse padrão caracteriza “comportamento coordenado inautêntico” — quando um grupo de contas se mobiliza para manipular o algoritmo e impulsionar a atenção a determinado tema, o que é proibido pela Meta.
Procurada, a Meta afirmou que não iria comentar a portaria do Ministério da Fazenda. Em seus termos de uso, a Meta exige que os anunciantes solicitem autorização para fazer propaganda de jogos de azar. Questionada em junho sobre falhas na moderação, a Meta disse trabalhar “muito” para limitar a disseminação de spam no Facebook e no Instagram, pois não permite conteúdos que possam enganar os usuários.
O TikTok também não quis comentar a medida da Fazenda, mas proíbe que o acesso e a promoção a jogos de azar sejam estimulados dentro da plataforma. No entanto, é fácil encontrar vídeos que ensinam supostas estratégias de vitória garantida no caça-níqueis.
O Google, que também trabalha com anúncios, não quis comentar. O buscador, assim como sua subsidiária YouTube, proíbe a divulgação de links de plataformas de apostas não autorizadas.
A popularização dos jogos e os riscos correlatos criam a necessidade de uma tutela jurídica especial, semelhante à proteção para idosos, crianças e pessoas em situação de superendividamento, segundo Alexandre Jabra, advogado especialista em direito do consumidor do escritório Trench Rossi Watanabe. “A legislação vai na mesma linha de alguns pontos já previstos no Código de Defesa do Consumidor”, diz.
Paulo Rená também expressa preocupação: “O vício pode levar a problemas individuais e coletivos, de saúde pública. A regulamentação parece suficiente para lidar com essa modalidade de jogos online de forma responsável, resta ver na prática”.